Vindo deste Vigo ao Porto Sem mala nem passaporte O comboio era tão velho Que o fumo cheirava a morte Pela manhã vi-me em S. Bento Tinha os olhos mal dormidos Estava na rua um silêncio Daqueles de abrir ouvidos Quando de repente o estrondo Duma esplosão fabulosa Me atirou quase por terra À esquina da Carvalhosa Vi um fumo no horizonte Tomei o trolley p'ra Baixa Desci depois do Palácio E fui deparar com um graxa - Olá, como está, disse eu - Eu bem, e vocemecê - De onde é que vem este fumo? - Do Inferno, então não vê? E em geito de despedida Disse "O meu nome é Duarte, Se vir por aí o diabo Diga que vem da minha parte" Lá fui andando para o fumo Que agora era quase branco Quando dei com um surdo-mudo Com um letreiro escrito "Manco" Perguntei-lhe pelo estrondo Respondeu "mudo não fala" A viagem ia ser grande Decidi comprar uma mala Entrei dentro dum quiosque Dirigi-me ao jornaleiro Mordeu-me e o sangue espirrou Nas notícias de Janeiro A descer a Boavista Surgiram três atletas Um piloto, outro ciclista E o outro pintava as metas Perguntei se o estrondo vinha Lá das bandas de Leixões Responderam "ao passarmos Só ouvimos ovações" Vi ao olhar da janela Dois carros feitos num feixe "se alguma janela aberta o incomada Peça ao condutor que a feche" Lá nos degraus do mercado Vi três senhoras em prantos Cobrindo o rosto com véus E o corpo com negros mantos Pensei, devem ter perdido Pai, marido ou companheiros Responderam "qual marido?, Quem perdeu foi o Salgueiros" Sem mais notícias do estrondo Fui comprar mais uma mala Não sabia o que pôr dentro Fui para o Douro lavá-la Estava meio vazo de água Sem ninguém nas redondezas Mas assim que mergulhei Perdi-me nas profundezas Voltei à tona molhado Gritei "Eh povo! Eh povo! Aquela explosão tão grande Era da casca dum ovo!" Lá de dentro veio um pinto Saíu e disse "sou eu" "Então eu que já nasci E o galo ainda não morreu?" Dizem que os pintos não voam Este voou sobre as casas Os que não voam não querem Ou lhes cortaram as asas Dizem que os pintos não voam Este voou sobre as casas Os que não voam não querem Ou lhes cortaram as asas